quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Caso Battisti: Semi-Final

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Carlos A. Lungarzo

Anistia Internacional

De acordo com um informe da Agência Brasil, repercutido pela maior parte dos órgãos de imprensa, mencionando uma declaração do chefe do Gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho, o ministro chefe da Advocacia Geral da União, Luiz Inácio Lucena Adams, teria entregado, na terça feira 21, a seu quase homônimo Luiz Inácio Lula da Silva, o parecer sobre o qual deverá fundamentar-se a decisão do presidente da república para determinar o status do perseguido escritor italiano Cesare Battisti.

O fato despertou muita curiosidade na imprensa tanto italiana como francesa e brasileira, embora seja impossível discernir qual é o grau de conhecimento que os diversos órgãos possuem sobre o particular, mas, ninguém duvida (com sentimentos diferentes, é claro), de que o presidente Lula rejeitará o pedido de extradição. Aliás, desde há mais de um ano, em novembro de 2009, quando Lula falou sobre o assunto na cidade de Salvador, na Bahia, mais de um 90% das pessoas interessadas (incluindo as autoridades italianas e a cúpula do Santo Ofício tropical, que simularam não acreditar que Lula fosse capaz de proteger Battisti) não duvidaram um segundo em pensar que a resposta de Lula seria uma rejeição ao pedido italiano. A conclusão era óbvia: se ele tivesse querido conceder a extradição, não esticaria o momento da decisão, pois não haveria nenhuma vantagem em estender o clima de tensão. Aliás, a cúpula do STF teria recebido uma decisão favorável de Lula com os braços abertos, e a elaboração daquele “complicado” acórdão que esgotou as reservas de neurônios do relator, teria demorado, em vez de mais de quatro meses, menos de quatro dias.

A curiosidade não é sobre o que vai decidir Lula, mas sobre quais são os mecanismos jurídicos em que sua decisão estará fundada. Segundo as mesmas fontes que divulgaram o encontro entre os dois dignitários, Lula teria manifestado sua decisão de “não deixar o problema para sua sucessora”, mas também não teria prometido sua assinatura para esta semana. Aparentemente, o presidente deseja ter um embasamento muito sólido da sua decisão, para “evitar desdobramentos”, o que em bom vernáculo pode ser traduzido como “evitar novas provocações dos inquisidores”.

Como já comentamos várias vezes, a AGU teria vários enunciados no Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália, que colocariam Battisti na absoluta impossibilidade de ser extraditado. Entretanto, é mais provável que Adams tenha se baseado especialmente na proibição constitucional, que, além de possuir maior força, apresenta um argumento de evidência absolutamente inquestionável: aquele da prisão perpétua a que Cesare está condenado na Itália.

É verdade que os outros argumentos, sobre direito a um julgamento justo, direito à integridade física e mental, e proteção contra tortura e morte, são absolutamente diáfanos, e o único que se poderia duvidar, com algum mínimo bom senso, seria seu risco de ser morto. Para tanto, poderia mencionar-se o caso de Tony Negri ou Adriano Sofri aos quais não se tentou matar, apesar de terem um perfil digno e não negociador, muito semelhante ao de Cesare. Mas, também é bom ter em conta que tanto o sindicato de carabineiros, como o de policiais, algumas organizações de vítimas, e até vários dignitários de estado, prometeram “acertar contas com ele”. Mas, o risco de tortura, o maltrato físico e psíquico, e absoluta falta de lisura jurídica, são absolutamente claros.

Entretanto, o argumento de que a Constituição Federal proíbe a prisão por vida é muito mais evidente a qualquer pessoa, seja que conheça ou não a situação de Battisti, mesmo que nunca tenha ouvido falar de extradição. Por outro lado, o apelo à Constituição tem um componente de soberania que dispensaria argumentações em torno dos outros artigos do tratado. É claro que o grupo (cuja dimensão atual já não é tão grande) que pretende o linchamento a todo custo pode inventar qualquer coisa: pode dizer que os italianos devem agir como lhes dê na telha, condenado o prisioneiro a prisão perpétua, fuzilamento, degola ou morte na roda. De fato, este tipo de baixarias foi várias vezes defendido por blogueiros “marrons” e advogados de pé de patíbulo.

Aliás, a cláusula colocada no relatório do caso Battisti, “exigindo” (?) que a Itália respeite os máximos de punibilidade que se aplicam no Brasil, é pura prestidigitação. Como foi muito bem enfatizado pelo jurista Dalmo Dallari, o processo contra Battisti já transitou totalmente em julgado. Ninguém poderia modificar a sentença de cadeia perpétua, para, por exemplo, 20 anos, como prometeram cinicamente alguns ministros italianos. Isso só poderia ser feito violando a lei italiana. Alguém pode dizer “e daí, qual é o problema do governo italiano em violar a lei?”. Concordo, não é problema nenhum. Mas, certamente não o fariam para ajudar a uma pessoa que tentam linchar desde 1981, e para o qual sim violaram e ajudaram a violar as leis internacionais.

Então, penso que o jurista Adams deve ter colocado sua ênfase na impossibilidade jurídica de entregar um extraditando estrangeiro a um país que já determinou, através de uma sentença definitiva, que o candidato sofrerá uma punição que a Constituição Brasileira acha indigna. Isto se afina com os mais exigentes padrões do direito internacional, e não requer nenhuma hesitação. Não obstante, entende-se a prudência do presidente Lula de ter todos os recursos jurídicos possíveis para justificar sua decisão.

Seria injusto com o presidente pensar que ele acredita que o ex-presidente do Tribunal e ex-relator da extradição 1085, se deixariam convencer por “razões jurídicas”. Contra a crença habitual de que juízes e tribunais possuem uma força, digamos, de iure, no caso do Brasil eles possuem uma força tão factual como a de um exército. Quem duvida, mate esta charada: “alguém pode dar um exemplo de um país democrático no qual alguma vez um corpo jurídico tenha invadido a jurisdição do executivo ao ponto de revogar um refúgio outorgado por este?”

Se alguém encontra um caso documentado sobre isto nos últimos 50 anos, adoraria saber, porque me ajudaria em minha condição de ativista de direitos humanos. Por sinal, nem a própria Itália faz isso. O que faz, como aconteceu no caso de Öcalan, é exatamente o oposto: a magistratura “lava as mãos” para que o governo extradite, expulse, seqüestre ou entregue a governos torturadores todos os estrangeiros pouco simpáticos. De vez em quanto, se a coisa levanta muita onda, se faz um simulacro de julgamento, como aconteceu recentemente com os agentes da CIA que foram condenados na Itália, mas jamais cumprirão suas penas. Sem dúvida, isto é tão infame como a interferência no executivo, mas não é a mesma coisa.

Mas o presidente Lula deve ter percebido que tanto os italianos como seus procuradores vernáculos estão desgastados, e provavelmente encontrariam no plenário do Supremo uma oposição algo maior. Tudo isto, entretanto, promove uma reflexão amarga. Qualquer que seja a figura jurídica usada pelo presidente (por exemplo, o asilo ou uma forma ampla de indulto), estas formas de graça ou “perdão” (perdão pela palavra, mas assim é chamado na gíria jurídica) são de absoluta discricionariedade do presidente da república, e qualquer intromissão da justiça nisso tornaria ainda mais sinistra a imagem do poder inquisitorial.

Baste lembrar que, no tortuoso e falacioso “documento didático”, escrito por Carlos Mário da Silva Velloso para “abrandar” a opinião pública, e mostrar como Genro era um moleque mal comportado, até aquele personagem de Umberto Eco reconheceu que o asilo era discricionário. Segundo ele, o “pecado” de Tarso era dar asilo “sob o disfarce de refúgio”. Embora esta última frase seja um sem sentido do tamanho da quadratura do círculo, é importante notar que o filósofo-magistrado não pôde evitar reconhecer que o poder de dar asilo é, sim, discricionário.

A reflexão amarga é esta: que tipo de democracia vivemos? Em nenhuma democracia, inclusive as mais fracas, o poder judicial se atribui o privilégio de outorgar ou privar o presidente de um direito dado pela Constituição. Quando fazem isto, como no caso de Honduras em 2009, é porque já se tornaram ditadura. O fato de que a sociedade brasileira, que possui excelentes juristas (todos os quais, por sinal, apoiaram Battisti) não consiga reagir a esses excessos, mostra um panorama de risco para a vida institucional futura. É estarrecedor pensar que os abusos do judiciário, em vez de serem denunciados a os organismos internacionais e ao próprio parlamento nacional, são aceitos pelas autoridades até com certo temor de não desagradar. A ditadura do judiciário da que falava Marco Aurélio de Mello não é, em absoluto, um perigo iminente: é uma realidade de altíssimo impacto que só não vemos porque não somos vítimas. Para talvez algum dia reajamos como o personagem da poesia de Brecht.

Mas, isso é um assunto que talvez mereça ser discutido durante décadas. Hoje devemos celebrar que a “vincenda” de Cesare está chegando a seu fim.




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