quarta-feira, 20 de maio de 2009

REGINA DO VALE CONTA PARTE DE SUA HISTÓRIA DE VIDA (DIA 16 DE MAIO :DIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIAS DE VIDA)

Relembrando
por Regina do Vale


Eu sabia que o papai tinha um livro de sonetos do Padre Chico, não sei se alguém da família se lembra das histórias desse personagem, irmão da vovó Maria, padre e jogador, que acabou com a fortuna do pai e arruinou os irmãos, sem que, pelo que sei, alguém se zangasse com ele. Tenho uma vaga impressão, uma lembrança não sei se minha ou de histórias ouvidas, de uma pessoa alegre e sedutora. Não sei se além do jogo ele teria outros vícios. Não consta da crônica familiar, ou pelo menos, não aparece nos fiapos dessa crônica que duram na minha lembrança.
(…)
É verdade que papai tinha me mostrado esse livro de sonetos há muitos anos, mas como eu achava repetitivo e formal tudo que ele contava, mal e mal escutava quando ele queria recordar histórias da infância em Minas Gerais. Só me lembrei disso com a morte de mamãe e o desmanche da casa. Tivemos medo que tivesse sumido, mas afinal apareceu: assinado simplesmente "Um mineiro". Como me sinto perigosamente instável, ameaçada de desaparecer de uma hora para outra, e tenho certeza de meus haveres exóticos, de estrangeira sem nome nem prestigio serão simplesmente jogados no lixo ou, no melhor dos casos, serão recolhidos por Emmaüs ou essas firmas que vêem esvaziar as casas em que todos morreram, ao vir embora para a França, deixei o livrinho em São Paulo, na Oficina Literária do Claudio Giordano, cuidadoso guardião da memoria editorial brasileira.
(...)
Quando ficou viúva, vovó Maria ficou sem recursos para criar os filhos, pois os poderosos da cidade lhe tiraram o correio, cargo que ela tinha herdado do marido, para dar a protegidos políticos. Hoje acho essa historia esquisita, mas é assim que me lembro e é assim que posso contar. Agarrando-se com a igreja, ela conseguiu educar os filhos como religiosos. Os dois filhos homens deixaram o seminário sem se ordenarem, mas duas das filhas mulheres se tornaram freiras. Uma enlouqueceu, mas a outra, tia Maria, ficou e venceu. Foi superiora de colégio e saiu no dia que decidiu, voltando para Pains. Casou com um primo farmacêutico, Juca, que foi prefeito da cidade, acho que impulsionado por ela. Esse primo era um homem muito fino, de uma polidez de antanho, com uma voz educadíssima, e do qual existe uma biografia feita por um sobrinho (de Brasília, acho – tinha um exemplar, que dei para a biblioteca de português da Sorbonne, que tem espaço para esse tipo de documentação biográfica).

O casal, tia Maria e tio Juca, mais tarde, mudou-se para Belo Horizonte, onde ele manteve uma farmácia ainda por muitos anos e ela fundou uma instituição para proteger as moças que vinham do interior para trabalhar nas casas de família. O intuito era puramente caritativo, mas, por causa da integridade da tia Maria, que tomou a defesa das moças em casos de injustiça flagrante,o « Lar das domésticas » provocou reações enraivecidas entre as ricas burguesas da cidade. Ela que era tão conservadora, sem querer ficou com uma fama um pouco subversiva, numa época em que direitos sindicais ou outros direitos de classe ainda eram tabu na nossa sociedade vagamente escravagista.
(...)
Minhas lembranças pessoais da cidade natal de meu pai se limitam a umas férias em que fomos de trem para Pains (acho que no trecho final tivemos que tomar uma "jardineira"). Me lembro da casa da vovó, muito rústica, de um primo bonitão e coxo de uma perna que chegava a cavalo, de muito barro e terra vermelha e de uma avó muito doce e quase humilde, que não falava muito mas que tinha uma habilidade manual extraordinária e uma criatividade que era um verdadeiro talento. Os presépios para os quais ela inventava material, reciclando tudo que sobrasse na casa, e criando grutas imponentes, paisagens sem fim; as flores de miolo de pão, de pano, os terços de contas, tudo que servisse para divertir, embelezar, espiritualizar a vida de quem vivia perto dela.
Para mim ela fez um dia um vestido de melão de São Caetano, as Caetaninhas da trepadeira verde com bagos amarelos e vermelhos, "a hera das nossas ruínas", como disse um dia Monteiro Lobato, e que me deixou uma lembrança maravilhada e feliz, de princesa, de magia e de gratidão.
Ela fez também uma linda boneca de pano, mas essa eu não soube apreciar, pois as bonecas de louça eram as únicas que eu era capaz de desejar. Desejar ter. Mas aquela boneca de pano ficou como um anelo não expressado, uma incompreensão do gesto que não se repete, da ternura que se recolhe.
“Do lado esquerdo carrego meus mortos, por isso ando sempre de banda” (mais lembranças de mineiros...esta é do itabirano).
Minha avó veio uma vez a Jacarézinho, onde morávamos durante toda minha infância, e me lembro que minha mãe ficava muito irritada com essa presença em casa. Uma vez ela fez chichi na cama e mamãe reclamou muito e vi que ela ficou humilhada. Tenho uma lembrança triste desse dia, era o dia em que vovó ia embora, e eu me lembro dela de pé, de costas para mim, perto da cômoda, provavelmente chorando, sempre com aqueles vestidos compridos e pretos, e o coquezinho no cabelo, que não tirava o ar doce que ela tinha. Mas e a minha mãe, que não tinha empregada e que tinha que lavar os lençóis, dar um jeito de limpar e secar o colchão? Naquele tempo não pensei nisso - e aliás enquanto morei no Brasil também não. O peso do trabalho nunca recaiu nas minhas costas enquanto eu morava aí.
Por enquanto é isso. Um beijo para você e dê notícias.

"Regina do Vale"

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