segunda-feira, 23 de março de 2009

Maria Rita Kehl discute as ideologias da TV

Por Carlos Eduardo Ortolan Miranda

“A grande perversão que se encena em ‘Big Brother Brasil’ e ‘Casa dos Artistas’ não é sexual. É a perversão da concorrência sem leis, espelho do estágio do capitalismo selvagem e decadente em que vive o país.” Essas e outras análises sobre a televisão são desenvolvidas pela psicanalista, ensaísta e poeta Maria Rita Kehl, em seu mais recente livro, “Videologias” -neologismo criado a partir de “vídeo”, “ideologia”, mas também da célebre obra de Roland Barthes, “Mitologias”.
“Videologias” reúne textos de Kehl e do jornalista Eugenio Bucci, atual presidente da Radiobrás. Realidade e ficcção, violência e exibicionismo, ética e fetichismo são alguns dos temas abordados na obra, numa interpretação materialista, que reúne Marx, Adorno e Guy Debord, bem como o arsenal psicanalístico. Para Kehl, o objetivo é dar conta do fenômeno multifacetário da televisão como ponta-de-lança da indústria cultural e extrair daí consequências éticas e políticas, além do possível papel pedagógico ou estético da TV.
A psicanalista Maria Rita Kehl, nascida em Campinas, é doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo e autora de vários livros, entre eles, “A Mínima Diferença – O Masculino e o Femino na Cultura” e “Sobre Ética e Psicanálise”. A seguir, ela fala de seu novo trabalho.

Uma questão inescapável, ao se abordar a televisão, é a da relação entre a imagem e a violência. A sua análise desvia da idéia simplista de que ver a violência na TV leva a agir violentamente e volta-se para entendimento da violência a partir do imaginário. O que é a violência imaginária?
Maria Rita Kehl: Sim. Mas eu não desprezo a influência direta da violência sobre o espectador. Não no sentido de que você assiste a um filme de faroeste e sai dando tiro por aí, mas no sentido de que a exposição permanente a um mundo ficcional onde a solução violenta é a mais esperada amplia nosso limiar de tolerância a ela. Isso eu observei de uma maneira muito banal. Filmes que eu havia visto e que me haviam deixado muito perturbada aos 20 anos, e que por acaso vi meus filhos assistindo na televisão aos 10 anos, pareciam a eles coisa normal, brincadeiras de criança. A própria sensibilidade à violência mudou. Mas isso é um aspecto secundário.
O que eu chamo da violência imaginária é aquela que é conseqüência das configurações subjetivas narcísicas -da identificação na imagem, da paranóia que essa identificação na imagem pode trazer. Porque, se eu estou identificado na imagem, se eu existo na imagem, há uma concorrência permanente pela visibilidade, e o corpo se torna muito importante.
A violência do imaginário seria essa violência produzida por uma sociedade que é organizada prioritariamente pela imagem, como é, sem dúvida, a nossa. O que se percebe na ausência de polissemia da imagem, ao menos naquela usada publicitariamente: ela não tem nenhuma abertura de sentido, ela tem um sentido muito imperativo.
Além do fato de nos colocar num registro imaginário, num registro narcísico -não de maneira absoluta, porque, enfim, a vida é contraditória-, ela diminui muito a possibilidade de se pensar alternativas à infelicidade, à opressão, à miséria. Justamente porque ela produz um sentido único. A imagem, tal como é utilizada na publicidade e no cinema comercial, ela tem um sentido muito fechado.

Como isso se relaciona com sua análise dos reality shows em "Videologias"?
Kehl: Resumo em três pontos meus argumentos de “Videologias”: primeiro, os reality shows não são, como se dizia de início, espetáculos de voyeurismo, mas de exibicionismo. Os participantes estão lá para se exibir, não para serem espionados -embora, nas primeiras vezes, o público possa ter gozado um pouco dessa impressão.
Segundo, a suposta espontaneidade do grupo, que garantia a sensação de estarmos assistindo à “vida como ela é”, rapidamente foi substituída por um padrão de comportamento estereotipado, orquestrado sob a batuta do animador Pedro Bial (no caso da Globo) ou de Sílvio Santos (SBT). O que não deixa de mostrar “a vida como ela é”, ou seja: a vida tomada de empréstimo pelo espetáculo.
Terceiro: a grande perversão que se encena nos ‘Big Brother Brasil’ e ‘Casa dos Artistas’ não é sexual. É a perversão da concorrência sem leis, espelho do estágio do capitalismo selvagem e decadente em que vive o país. Em pouco tempo o público passou a se interessar mais pelas sacanagens da concorrência pelo prêmio final do que pelas sacanagens sexuais.

Fredric Jameson, ao comentar o cinema, chega a dizer que “toda imagem é pornográfica”, no sentido de que ela se presta puramente ao gozo estético, impedindo a reflexão. O que acha disso?
Kehl: Esse é o segundo ponto da minha análise: justamente que a imagem dispensa o pensamento, dispensa a reflexão. E daí, seguindo a questão da Hanna Arendt, onde a reflexão é supérflua, logo somos supérfluos, e surge a banalidade do mal.
Eu só não concordaria que é toda a imagem, porque mesmo no cinema, existem mestres da imagem em aberto, da imagem-enigma, da imagem que oferece fruição e a retira, como Godard. Para mim Godard é isso, ele nunca te deixa gozar tanto quanto a imagem possibilitaria, ele sempre te deixa em falta, ele consegue trabalhar a imagem e incluir a falta, colocar a falta na linguagem imagética. Coisa que é o contrário do grande cinema de espetáculo, nele não há falta. Não há falta de compreensão, não há falta de visibilidade, não há falta de verdade, não há falta de fruição, não há falta de estética, ele é totalmente preenchido pela imagem.

No artigo intitulado “Fetichismo”, você utiliza o conceito em suas duas acepções teóricas mais conhecidas, a marxista e a freudiana. E conclui que, enquanto a neurose era a enfermidade psíquica clássica na consolidação da sociedade industrial de produção, agora, na sociedade de consumo, essa enfermidade essencial é substituída, ou atualizada, pela perversão.
Kehl: Isso para mim, agora, é de novo um problema muito difícil. Este ensaio é de 1999, e estou até revendo esses conceitos, para falar a verdade. No seguinte sentido: não sei se hoje nós somos mais perversos, você pode até pensar que o modo como a sociedade se organiza hoje se dá em termos da perversão. A sociedade é fetichista.
No século XIX, a sociedade era neurótica. A interdição ao gozo era muito clara, a histeria aparecia como uma manifestação do sofrimento causado por isso. A metáfora paterna ainda era afirmada como lei, tinha caráter normativo, como sustentação da lei, até o preço das inibições todas neuróticas. Na época, a ênfase do capitalismo estava na produção. Estava no esforço, no sacrifício, no adiamento da gratificação, na renúncia funcional, tudo que Freud vai mostrando como condições da neurose...
A ética protestante e o espírito do capitalismo...
Kehl: Sem dúvida. A ética protestante seria uma espécie de ponta da superestrutura disso que é a produção da neurose. O que nós temos no capitalismo de consumo, da metade do século XX em diante, é que a ênfase ideológica se desloca da produção para o consumo. Aí sim, o fetiche ganha uma importância, digamos, de ordenador do laço social, maior talvez do que ele tem quando ordena apenas a relação capital-trabalho.
Então, o que significa dizer que hoje o laço social é organizado de maneira perversa? Não é mais um pai castrador que nos submete, pensando ainda em um Estado forte, numa religião, como o protestantismo, numa moral coercitiva etc. Hoje, ao contrário, o que nos submete é uma espécie de “mestre do gozo”.

Do qual a maioria estaria excluída....
Kehl: Do qual a maioria está excluída da prática do consumo, mas não está excluída nos termos do gozo. O mais miserável cidadão também está convocado ao gozo, embora sofra restrições de caráter material, ele também está incluído nessa regra de “no limits”.
É por isso que o menino da favela mata por um tênis, não por comida. E dentro dessa lógica faz sentido, porque o tênis é um objeto de gozo, a comida é necessidade. O pai desse menino da favela, digamos, que pode ser um trabalhador formado numa outra ética, no desespero do desemprego pode roubar um saco de arroz no supermercado. Mas o garoto que mata por um tênis, ele já está no funcionamento do gozo.

Ele rouba uma imagem.
Kehl: Exatamente. Agora, a questão é entender se esse mestre perverso, que nos submete hoje, que fala em nome do fetiche, que faz com que o fetiche continue a nos mistificar, se ele forma sujeitos perversos, ou se ele forma neuróticos. Essa é uma questão freudiana, sobre a qual tenho pensado depois que escrevi esse artigo. Estou trabalhando nisso em outro texto, porque o neurótico também é fascinado pelo perverso.
Muitas vezes você vê, agora na prática clínica, na parceria amorosa, por exemplo, o neurótico submetido ao parceiro perverso. Porque, como o neurótico não sabe nada do seu gozo, ele se submete a um que se coloca na posição de “eu sei, eu domino, eu faço”. Então, é uma questão que estou repensando. Não afirmaria, como naquele texto, que “éramos neuróticos no passado, somos perversos hoje”, porque talvez sejamos os mesmos neuróticos, mas dominados, alienados por outro mestre.

As TVs educativas no Brasil, especialmente a TV Cultura, desempenham o papel que se esperaria delas num país como o nosso?
Kehl: Não acompanho a programação infantil da TV Cultura porque não tenho filhos nessa idade e nunca estou em casa nos horários. Penso que a TV e também a rádio Cultura são patrimônios preciosos da sociedade brasileira. Mas estão em risco. Há problemas com o orçamento do governo estadual -a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) come grande parte da verba da Secretaria da Cultura. E até o ano passado havia divergências quanto ao modo de gestão de Jorge Cunha Lima, que tentou tornar a programação mais comercial e felizmente falhou.
O jornalismo da TV Cultura é ótimo. Programas culturais, como o “Metrópoles”, prestam um serviço de levar informação do que se passa no mundo das artes para pessoas que nunca assistiram um espetáculo de dança, nunca viram uma exposição, e se interessam por isso. Tanto assim que, quando a direção da emissora tentou jogar o “Metrópoles” para um horário mais tarde, houve tantas reclamações que tiveram que trazê-lo de volta para o horário nobre.

Como pensar o papel de uma TV educativa no Brasil?
Kehl: O papel da TV educativa é se manter, antes de mais nada, como uma referência ética para as outras emissoras. Por não ter compromisso estrito com o lucro, as TVs educativas têm condições de manter uma programação de qualidade sem forçar limites de sensacionalismo, apelo à violência, espetacularização da miséria etc., na guerra pela audiência. Também faz uma enorme diferença a ausência, ou pelo menos a presença mais discreta, da publicidade.
Ninguém até hoje avaliou a fundo as consequências do fato de que o que mais se assiste, em qualquer horário, em qualquer canal da TV brasileira, é publicidade. E a publicidade não tem limites éticos a não ser nos casos extremos proibidos por lei.
Em segundo lugar, as TVs educativas podem ser um laboratório de criação de programas de qualidade. Como não estão estritamente comprometidas com a corrida pela audiência, podem arriscar inovações que as outras emissoras não fazem.
Nesse ponto, acho que a TV Cultura e a rede de TVs educativas são ainda muito tímidas, muito conservadoras. Não basta transmitir música clássica ou programas de auxílio ao aprendizado escolar. As TVs públicas podem e devem patrocinar experiências em documentários, curta-metragens, em teledramaturgia e jornalismo de ponta. Ainda há muito espaço a ser aproveitado, e espero que o atual Ministério da Cultura acorde para a necessidade de dispor de verbas para isso.

Como você vê o fenômeno da permanência da telenovela no Brasil?
Kehl: A telenovela é um excelente entretenimento. Ela acompanha a vida cotidiana e cria o hábito, ou até mesmo o vício, nos telespectadores. Os personagens vão se tornando familiares, fazem companhia a quem acompanha a trama, tornam-se queridos mesmo quando são vilões. Além disso, as melhores telenovelas, calcadas no modelo do folhetim do século XIX, trazem sempre à baila questões emergentes, que a sociedade está vivendo ou discutindo.
Pelo menos este é o caso das telenovelas da Globo, a emissora que inovou e modernizou o gênero, que, até os anos 70 no Brasil, era calcado em modelos trazidos de Cuba e do México. A grande sacada do Daniel Filho, no início da década de 70, foi trazer a novela para a cena urbana ou rural brasileira e alimentar o melodrama com os dramas sociais próximos à experiência do público.

Mas essas mesmas qualidades são responsáveis pelos defeitos e pelos limites éticos e estéticos da telenovela. Por ser tão cotidiana e acompanhar tão de perto o ambiente social de seu tempo, ela é a própria encarnação da ideologia. Para atingir um público tão extenso e diferenciado, a telenovela tem que corresponder à média da chamada opinião pública e não pode romper com as expectativas do público (que ela mesma criou) para não perder audiência.
A moral da telenovela é sempre a moral média da classe média brasileira. Suas ousadias estéticas ou temáticas costumam ir se diluindo na medida em que se desenvolve a história, e a resolução dos pontos polêmicos que ela aborda nunca fere o senso comum. O realismo da telenovela corresponde ao que Engels escreveu sobre o folhetim em “A Sagrada Família”: ela reproduz a realidade moral e ideológica da sociedade a que se dirige.

Você parece apreciar especialmente o conceito de “espetacularização”, de Guy Debord, para o entendimento do fenômeno televisivo. A leitura de Debord ultrapassa, atualiza ou confirma as análises da “indústria cultural” feitas por Adorno e Horkheimer?
Kehl: Quem me mostrou a radicalidade do conceito de “Espetáculo” do Debord foi o Eugênio Bucci. É importante deixar esse reconhecimento, pois acho que ele trabalha com isso com mais propriedade que eu. E nós tivemos exatamente essa conversa a que você se refere: se são dois modos diferentes de pensar, ou se um é consequência do outro.
Quando o Adorno pensou a indústria cultural, logo depois da Segunda Guerra Mundial, a televisão estava bem em seu início, tanto que ele tem um pequeno parágrafo sobre ela. Diz que a televisão é uma síntese do cinema e do rádio e já prevê um potencial um tanto diabólico para ela. Barthes, em “Mitologias”, não toca na televisão.
É como a parábola dos sete cegos e o elefante, um pega pela pata, outro pela tromba, e nenhum deles consegue uma percepção total do objeto. Talvez porque esse objeto -não apenas a TV, mas a produção do imaginário que se escoa por diversas mídias- seja tão camaleônico, tão avesso a uma síntese. Adorno previa uma espécie de totalização do mundo através da indústria cultural. Embora eu concorde com isso, sempre penso que a lógica adorniana acaba um pouco por nos sufocar, talvez até apagando a dialética. Não sou filósofa para fazer uma crítica ao Adorno, mas é quase como se ele acreditasse no fim da história, como se se empolgasse com o próprio mecanismo de análise que ele descobre e vai fazendo com que ele se torne único.
De qualquer maneira, quando vem a televisão, tecnicamente ela tem um potencial de realizar a totalização, em sentido negativo, apregoada pelo Adorno. Mas creio que não se dê essa totalização, porque aquilo que o mecanismo de análise do Adorno não contempla, e talvez meus textos também não, é a necessária contradição dessa máquina. Ela tem que se alimentar justamente do novo, e assim acaba trazendo para dentro de si alguma contradição. Quando o “Casseta & Planeta” faz crítica ao telejornalismo da Globo, esta crítica não é totalmente neutralizada.
Sou muito criticada a respeito de minhas análises, pois acham que estou querendo voltar a uma era pré-televisiva ao pensar a TV e as suas consequências sobre a subjetividade. É evidente que isso é impossível, a televisão é um instrumento democrático muito poderoso. A questão é pensar, discutir a TV, não deixar que tudo passe em branco, como se fosse um dado da natureza humana. E também refletir o tempo todo sobre a relação da TV com a concentração de capital.


Carlos Eduardo Ortolan Miranda
É tradutor e crítico, mestrando em filosofia na USP.

FONTE : http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2474,1.shl

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